O excelente romance de Barry Unsworth, Autos de Moralidade, se passa nos estertores desse período, em plena Inglaterra do século XIV, época marcada por guerras e pestes como poucos (foi a época da guerra dos Cem anos entre a França e a Inglaterra e da disseminação da Peste Negra).
Nicholas Barber é um jovem padre que “não suportou ouvir o canto dos pássaros” em sua janela durante a primavera e saiu de sua diocese sem a permissão do bispo. Seu jovem coração fogoso o levou a cometer adultério. Passou então a vagar pelas estradas e, para sobreviver, cantava em Tabernas e apostava em jogos de azar, atos condenáveis para um homem com deveres sacerdotais. É durante uma dessas suas andanças que Nicholas conhece uma trupe de artistas que, a caminho de uma festa de aniversário, se vê às voltas com a morte de um de seus integrantes e com a necessidade de encenar alguns “autos de moralidade” para levantarem o dinheiro necessário à sua sobrevivência até o destino almejado.
O “Auto” é um subgênero da literatura dramática cujas origens remontam à Espanha do século XII e que tem no português Gil Vicente um de seus maiores expoentes. Escrito em redondilhas estas peças tinham como objetivo a encenação de trechos da bíblia com o intuito de auxiliar na difusão da mensagem cristã na maioria da população européia, que era analfabeta e que ainda estava bastante arraigada os ritos pagãos. Podiam, além disso, também serem utilizados para satirizar pessoas poderosas e autoridades públicas. No Brasil “recém-descoberto”, por exemplo, estes autos foram de suma importância para a catequização dos nativos.
A trupe decide encenar alguns autos conhecidos da população, mas obtém somente o suficiente para uma precária sobrevivência. Decidem então dar um passou ousado: encenar uma história real, a da morte do garoto Tomas Wells, um crime marcado por mistério e pelo envolvimento de pessoas importantes do lugar. As encenações se seguem e causam alvoroço na população, que não concorda com muito das conclusões apresentadas pelos atores. A peça se transforma a cada encenação, adicionada de novas informações e, de forma semelhante, os atores também se envolvem e se afetam de formas imprevistas. A tensão cresce e chega a níveis insuportáveis para todos, culminando num desfecho surpreendente que não desejo reproduzir aqui.
Desejo, não obstante, compartilhar alguns pensamentos meus surgidos a partir da leitura desta impressionante obra.
Primeiramente é-me interessante ressaltar essa espécie de “jogo infinito das representações” que compõe o livro. Todos estão representando, e o próprio livro, contado como o relato de fatos passados pelo padre é, por si só, um grande “auto de moralidade” cujo objectivo é justamente o de satirizar os “autos de moralidade” que encenamos cotidianamente em todos os domínios da nossa existência. Somente “escondidos” da cena pública é que deixamos transparecer nosso lado mesquinho, negro, condenável. Nicholas, por exemplo, tem sua fase “devassa” resumida em algumas linhas, como se o próprio quisesse minimizar a importância destas para sua vida. O filho do Lorde Richard de Guise, a peça do quebra cabeças que faltava para a elucidação do crime, só aparece uma vez em todo o romance, numa cena aparentemente sem mais importância.
Lear: Não, não, não, não. Vamos já daqui para a prisão, Nós juntos vamos cantar como pássaros na gaiola. Quando me pedires a bêncão, hei-de ajoelhar E pedir-te perdão. E assim havemos de viver, E rezar, e cantar, e contar … Ler mais
Autor de obra única na literatura teatral brasileira. Única pela grandeza de concepção. Única pela unidade e coerência com que os seus elementos componentes se subordinam ao fio central. Única em sua busca das origens suas e de sua gente: … Ler mais