Romances

De víbora na mão Hervé Bazin

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    Um dos mais célebres romances infanto juvenis da literatura francesa, De víbora na mão é ainda hoje referência quando se fala em infância penosa. A mãe perversa, o pai submisso e negligente, as crianças martirizadas e a troca constante de preceptores compõem o quadro do fracasso doméstico da família Rezeau.

    Jean Rezeau e seu irmão mais velho levam uma vida tranquila com a avó na mansão da família, constituída também por uma capela e uma boulangerie. Porém, a morte da avó obriga o retorno dos pais e do irmão mais novo da Indochina. É o fim da infância: passamos a acompanhar o combate agressivo e impiedoso de uma criança contra sua mãe, numa família da burguesia tradicionalista na década de 20.

    Desde seu retorno, a mãe, Paule – ou Folcoche, junção de “folle” e “cochonne” (louca esuja/vagabunda, respectivamente), como é secretamente apelidada pelos filhos – assume o comando e anuncia aos garotos suas diretrizes: as crianças perdem o café com leite de todas as manhãs, devendo se contentar com a sopa; seus objetos pessoais são todos confiscados; seus cabelos são mantidos sempre bem curtos por questões de higiene; por “segurança”, não podem ter edredons e almofadas em seus quartos; os horários de recreação são estritamente controlados e devem ser muitas vezes dedicados à manutenção dos jardins e áreas verdes da propriedade. Além disso, a formação e educação dos filhos ficam inteiramente a cargo de um religioso que vive com a família, e que é substituído com certa frequência.

    Assistimos ao decorrer – e à decadência – da infância e adolescência dos três garotos através do olhar do filho do meio, Jean Rezeau. O mais rebelde e audacioso dos irmãos, Jean é um garoto difícil (ainda que tenha um bom coração), forçado a amadurecer antes do tempo. Jean é um narrador de palavras irônicas e mordazes, e seus atos podem ser um tanto cruéis. O que não requer muito esforço para compreendermos: com a mãe, ele aprende não o amor, mas o ato de odiar. A relação com Paule é marcada por ambiguidades, uma vez que Jean é o filho que mais se parece, em essência, a ela. Ele a enfrenta, e é quem mais deseja destruí-la; e, dos três garotos, é o que acaba sendo o maior alvo do desprezo da mãe.

    A mãe tirana é, junto com o garoto Jean, a personagem de destaque da trama. Fria, cruel e com princípios ultrapassados, Paule usa uma falsa e exagerada religiosidade para justificar seus atos. De feições duras e ressecadas, como a define o próprio Jean, ela lança mão da violência física, psicológica e moral contra os filhos. Durante as refeições, Paule não hesita em espetar com violência um dos meninos com o garfo se percebe uma postura considerada inadequada. Se os empregados tentam intervir, são dispensados de imediato – destino de vários deles, com exceção da velha cozinheira cuja condição de surda-muda acaba por favorecê-la.

    Privados de conforto e afeto, as três crianças são constantemente punidas e humilhadas pela mãe. Entomologista, Jacques, o pai, sempre tem insetos a caçar e analisar; dentro de casa, prefere fingir que nada vê, evitando conflitos com a mulher.

    Usando de humor negro e um saboroso tom debochado, Jean nos revela suas artimanhas com os irmãos para irritar e tornar mais difícil a vida da mãe, resposta às injustiças que os três sofrem todos os dias. Da resistência aos castigos até os poucos meios que encontram para coletar objetos e alimentos a eles proibidos e mantê-los escondidos da mãe, a vida dos garotos Rezeau é uma luta diária. O ódio é respondido com mais ódio: os garotos detestam a mãe e chegam a desejar-lhe não só a morte, mas serem eles mesmos os agentes causadores desta.

    O que mais atrai no decorrer da trama é observar a maneira como a cólera é alimentada e desenvolvida em Jean, ainda garoto e depois adolescente. E, ainda, a desesperada busca pela libertação, por uma vida de verdade.

    As consequências dessa não infância vivida por Jean são percebidas, primeiramente, com arejeição de todos os valores provenientes do ambiente familiar, como a religião. Já na adolescência, o garoto passa a associar a figura da mulher a um ser impuro, que não merece ser respeitado – ele vê a própria mãe em cada menina, em cada mulher –, o que é bem visível no momento em que se envolve com uma garota do entorno. A vivência com a mãe molda o comportamento e o caráter de Jean de maneira talvez irreversível.

    Outro grande atrativo é que o livro tem caráter amplamente autobiográfico, tendo o autor sido filho de uma mãe tirana. Diversos elementos, como os nomes dos familiares, foram apenas minimamente modificados. De fato, Hervé Bazin sempre colocou a família no centro de todos os seus romances, tornando esse tipo de temática uma marca do autor.

    De víbora na mão pode perfeitamente ser lido como um romance único, mas a verdade é que ele originou outros dois livros, que continuam a narrar a vida do garoto Jean Rezeau. La mort du petit cheval e Cri de la choutette mostram, respectivamente, sua passagem para a idade adulta e, por fim, a volta da mãe vinte anos depois. (Acreditem, depois desse livro bombástico, vocês irão querer, a todo custo, ler a trilogia completa. Eu, pelo menos, quero desesperadamente!)

    A edição mostrada neste post é a portuguesa , pois o livro, até onde sei, não tem edição brasileira. Mas não façam disto um obstáculo para a leitura – vocês estariam jogando fora a chance de conhecer uma grande obra.

    Apesar de considerado infantojuvenil – inclusive, os jovens franceses costumam estudar esse livro na escola –, De víbora na mão não se trata somente de um livro para divertir, e tampouco tem o estilo “leitura obrigatória do colégio”. Pelo contrário: tem o poder de sacudir e transformar o leitor. Ao desconstruir completamente a imagem da mãe, o livro perturba, até agride quem o lê – de maneira que considero muito positiva. E faz com que terminemos a leitura com “um algo” diferente aqui dentro.

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